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Transferência

Foto do escritor: LanternaLanterna

O queridinho de “Barbie”, Ryan Gosling, está no longa “A Garota ideal”, exibido pela plataforma MUBI. A trama é de 2007 e foi indicada ao Oscar por melhor roteiro original na época.

Ryan performa Lars, um jovem de 28 anos solitário e tímido. Apesar das investidas da colega de trabalho, ou da família, esperando aproximação, Lars é contido, recluso e averso a qualquer contato social.

Após um colega, fã de bonecos colecionáveis, comentar que existem mulheres de plástico à venda em tamanho real e do jeito que quisermos, Lars encomenda a sua pela internet e, logo em seguida, anuncia à família que está em um relacionamento sério com ela.

A namorada é apresentada como estrangeira e cadeirante, por isso não ficaria confortável conversando e não se locomove sem ser carregada.

Preocupados e aconselhados por uma psicóloga, os mais próximos conseguem comover a comunidade para abraçar a visão de Lars e interagir com a namorada, como se fosse uma pessoal real.

Inclusive ela sempre foi real para Lars e, essa questão, de se por no lugar do delírio de uma pessoa querida, ser o que de fato motivou as pessoas à se compadecerem e serem gentis com Lars.

Tal como fazemos ao cuidar e educar as crianças, seja pelo amor a elas ou pelo amor à educação e orientação, existe uma dinâmica específica de estabelecer conexão pela linguagem.

Em 1929, a psicanalista Melanie Klein publicou um trabalho de terapia psicanalítica infantil expondo o caso de Ruth, uma menina de quatro anos e meio que não conseguia se comunicar com estranhos sem a presença de um terceiro elemento.

Ciente da necessidade de um processo de transferência positiva, o que parece muito com o caso de Lars, a psicóloga interage com a menina se reportando à boneca que ela escolhe, ou à pessoa de confiança que ela tem (irmã).

Assim, o que a criança dizia que a boneca passava, percebia ou determinava, era no fundo um espelho do que a menina estava sentindo, vendo, percebendo, temendo ou desejando.

Ao deslocar a fala, a comunicação, o contato, à uma representação significativa (coisa que o cinema faz bastante com suas mensagens metafóricas e impessoais através de personagens identificáveis), a psicóloga reduzia a ansiedade da criança e era assistida por ela com aprovação após uma transferência mental positiva.

O método de transferência é o da repetição. Tudo o que a menina fazia, e Lars também, tratando as bonecas como outra criança e como outro adulto, respectivamente, a psicóloga Melanie repetia ao lado dela, e a comunidade de Lars também.

O conforto de ser compreendido libera doses de socialização aos poucos, porque a confiança no externo passa a ser gerada pela identificação dessa lógica, percebida no exterior, com a lógica interna. Assim, pertenço a algo que antes me excluía.

Durante o tratamento terapêutico de Melanie com Ruth ela sugeriu que houvesse uma fixação da menina pela mãe. A culpa gera fixação e depois repetimos essa sensação ao longo da vida.

Vamos lá, a culpa gera fixação por medo de que aquela pessoa que eu hipoteticamente feri ou desejei ferir, ou no mínimo contribuí com a infelicidade, desapareça da minha vida, retribuindo o meu mal.

Alguns anos antes, quando a mãe de Ruth estava grávida, ela desenvolveu terror noturno. Em muitas de suas brincadeiras em sessão, a menina se colocava menor que a mãe (inveja da genitora) e protestava contra o pênis do pai (poder), expressando-se no sentido de não querer ter irmãos e preferir que morressem.

A agressividade/hostilidade para com a mãe grávida gerou uma culpa latente na menina que se manifestava na forma de obsessão pela mãe.

A hostilidade, e vamos lembrar que quando ela é reprimida há um processo exaustivo de ansiedade, é medo e preocupação com o abandono dos cuidados pelo cuidador, como concluiu a psicanalista. Segundo o mecanismo de culpa, a pessoa teria razão em deixar aquele que é “culpado” para trás e, assim, nos tornamos codependentes, obcecados, fixados.

Lars, nosso querido de “a garota ideal”, dividia o cronograma da namorada (boneca) com as pessoas de que mais gostava, que eram as responsáveis por alimentá-la, pô-la para dormir, transportá-la, nutri-la.

Em certo momento do filme, Lars deixa escapar que se sentiu abandonado quando criança pelo irmão mais velho junto do pai doente. Descuidado e com a confiança quebrada, foi reforçando a intenção de restituição do cuidado que perdeu enquanto criança, pelo dia-a-dia que o irmão e a esposa dedicavam à namorada dele.

A garota ideal de Lars é na verdade a reconstituição de uma dor de infância. Parado no desenvolvimento pessoal, e bloqueado pelo trauma do abandono, ele recupera seu itinerário de lapidação da personalidade através da atenção e da dedicação que a boneca recebe.

Assim como Ruth.



 
 
 

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