O ano era 1994, quando Verena Kast publicou "Pais e filhas, mães e filhos".
Psicoterapeuta e escritora suíça, Verena desenvolveu o trabalho de Jung na psicologia analítica. Através de sua experiência clínica, ela desdobrou vários acompanhamentos pessoais em complexos paterno e materno, de uma maneira sensível e cuidadosa.
Pressupondo os condicionamentos de gênero, em que as expectativas, projeções e repressões são culturalmente especificadas, não só no seio social, mas também no familiar, ela deixou diversos apontamentos sobre as diferenças de cada qual, independente de orientação sexual.
Esses complexos podem ser originalmente positivos ou negativos, e predominarem mais, segundo a principal maneira de socialização do indivíduo.
Se a pessoa, por exemplo, tem por espelho a mãe, é possível que desenvolva um forte complexo materno, do qual precisará se desligar na idade adulta, quando é a hora. No entanto, esses complexos, autônomos e autodirigidos, muitas vezes estão no campo oculto do inconsciente, arrastando o indivíduo, sem que perceba, para que enxergue a mãe no outro, ou enxergue-se como ela, mesmo em relações não maternas.
Isso causa dores profundas e colapso nas relações interpessoais, especialmente se o complexo é originalmente negativo, como no filme "Coraline", em que a pequena encontra um "mundo paralelo", para viver com uma "outra mãe", exatamente do jeito que ela sonhava.
A 'outra mãe' é tudo o que o complexo exige: 'a grande mãe' arquetípica do inconsciente coletivo, que cuida, acolhe, serve, ama incondicionalmente, e defende de todo o mal.
O complexo originalmente negativo é torturante. Verena o resume com a divisa "um ser humano ruim em um mundo ruim", em que a mulher adulta entende o seu ambiente como hostil, na constante defesa de estar em um ninho em que é indesejada, estranha, maltratada. Assim o mundo lhe parece, refletindo maus-tratos por onde ela for, ainda que completamente subjetivados.
Ao contrário, o complexo originalmente positivo, que intuitivamente podemos pensar ser algo de todo bom, precisa ser desligado na fase adulta, através do "fazer diferente", mas de uma forma particular, em que o complexado se torna sujeito, e não mais uma órbita do complexo, secundarizado pela consciência da mãe.
Verena resume esse fator como a mulher que "pode aguentar quase tudo na vida quando se comeu bem". O complexo positivo a sustenta a nível de sobrevivência, mas tão só. A felicidade, que extrapola o básico (a comida, o lar, o carinho familiar), precisa alcançar a autorrealização fora do complexo, de maneira franca, individualizada.
Isso pode se dar numa longa jornada. Algo que passeia entre o conceito de individuação da personalidade de Jung.
No filme, Coraline acaba descobrindo que todo o amor da outra mãe era falso. Não fazia parte de um senso de objetividade, mas de uma esperança, ou expectativa. Ela precisaria permanecer aprisionada no mundo paralelo para usufruir da "não-mãe", a "mãe ideal".
Essa ideia se tornava tão torturante, quanto aquela que a levou até lá. No fundo, não queria um serviço, uma condição, um compromisso castrante. É seu caminho de liberdade que a levará ao alívio.
E esse caminho só a dona saberá.

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