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Sede de viver - Falando sobre identidades

Foto do escritor: LanternaLanterna

O primeiro sinal de identidade é o nome, já o segundo pode ser uma marca pessoal, como sua caligrafia ou sua voz.


Nomes são signos enquanto vozes são ecos, são sons de rádio em estações FM, literalmente. Se o nome é um chamado especial, JR não se sentia assim, ou pelo menos o psicólogo da escola dele.


O filme é “Sede de viver” e a produção dirigida por George Clooney foi indicada a um Golden Globe em 2022.


A história é sobre um garoto simples, de família pobre, durante a década de 80 nos Estados Unidos.


O pai nunca assumiu a responsabilidade com o garoto, mas era um cantor famoso, pelo menos nas rádios locais, e por isso o menino podia sempre ouvir sua voz.


Este era o máximo contato com aquele que o colocou no mundo, aquele que de certa forma seria uma das fontes de sua identidade generativa.


O seu nome era JR, derivado de junior, mas o filme brinca com as siglas a todo tempo, deixando sugestões sobre ser mesmo junior ou um abreviado de nome próprio. A ideia dada pelo psicólogo da escola era a de que ele possivelmente vivia sem identidade pessoal definida. Afinal, o que são identidades?


Elas se constroem individualmente ou pelas referências? De que forma se apresentam definidas para nós e, depois, para o mundo?


Para as crianças, a primeira referência é de fato familiar. Antes da escola e das atividades extracurriculares o primeiro convívio é entre parentes.


Durante o desenvolvimento psicossexual do indivíduo, a quarta fase, a de latência, parece ser a que marca o encontro presencial de JR com o pai pela primeira vez.


Esta fase, de latência, dura dos 7 aos 11 anos de idade segundo entendimento freudiano. A libido é inibida em prol do desenvolvimento intelectual, que é o que parece acontecer com JR na sua avidez pela leitura.


Com uma vida difícil, aprofundou seu gosto pelos livros e pelos estudos, decidindo se tornar um escritor um dia. Foi a seu modo um sonhador num universo particular, cercado por outras tantas dores familiares que se encontram nas vozes de quem se ausenta ou se apresenta no lar.


Para quem escreve, inclusive, pode-se pensar no conceito abstrato de “voz do autor”, situação em que a narrativa, mesmo que complexa, sempre ganha um dono na sua ótica.


JR podia não ter mais do que a voz do pai biológico, mas não quer dizer que a poltrona da figura paterna estivesse de todo vazia.


O tio do menino cumpria seu papel de incentivo, proteção e acolhimento, na medida do possível. Sentiu-se, aliás, ofendido pelo psicólogo quando este deu a entender de que o pai biológico tinha, pela ausência, comprometido a identidade de uma criança afetada por muitas outras pessoas.


Bem conveniente ser da nossa consideração de que pelo complexo edipiano não há a interferência colateral de tios e parentes correlatos no espelho psicossexual de desenvolvimento.


No entanto, quando falamos de influências e assimilação identitária, a cultura é de essencial impacto.


Os símbolos culturais de adoração de um certo público são medidos também por afinidade etária, época e circunstâncias não só atuais como ancestrais, refletidos assim pela expressividade individual que dá um sentido próprio de identificação.


O filme, inclusive, aborda como a cultura afeta o indivíduo nas suas encruzilhadas de vida. JR, de família pobre, apaixona-se por uma moça de classe social superior, o que na década de 80 teria sido suficiente para retirá-lo do páreo diante da oficialização de um compromisso com ela.


É como se ele arrastasse consigo as sombras da categoria em que estivesse inserido pela cultura social, neste caso socioeconômica.


Sem identificação da família dela com a dele, é como se ele pertencesse à identidade familiar estranha, como se fosse um estrangeiro inapto para os paradigmas coloniais da grande conquista.


Ainda que fosse um “assimilado”, que estudasse na mesma escola, que falasse a mesma língua e vivessem na mesma cidade, ou seja, tenham pontos de contato significativos de meio, a origem, ou natureza dos dois os colocavam em degraus assimétricos e, portanto, inatingíveis.


O filme é de uma sensibilidade bonita e tão conciso que pode ser explorado por meio de muitas camadas diferentes. A metragem amadurece conforme JR envelhece também, deixando a entender de que nem sempre a vida prática sobrevive às boas intenções.


Ele aborda em pouco menos de duas horas uma história encharcada de informações, tão cheia delas que o título traduzido não poderia ter sido diferente: sede de viver.





 
 
 

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