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Rebanho familiar

Foto do escritor: LanternaLanterna

O filme sete mulheres e um mistério é um longa italiano lançado no fim de 2021 pelo diretor Alessandro Genovesi.


Se não fosse pelo figurino burlesco e pelo humor teatral, nos confundiria com a mesma fonte criativa de “Assassinato no Expresso do Oriente”, em que suspeitos são inquiridos até que se entenda a morte de um dos integrantes.


O filme também traz algo do fundo psíquico da metragem recém saída do forno “Glass Onion” (“Cebola de vidro”), coestrelada pelo ex-007 Daniel Craig e já adicionada ao catálogo Netflix.


Mas ao contrário de descascar uma cebola, assistir a 7 mulheres e um mistério não te fará chorar quanto mais próximo do fim, mesmo que a trama toda seja sobre a investigação de um assassinato em casa.


Inicialmente, percebemos que a individualidade dos personagens vem com o montar de personalidades caricatas; isso contribui com a apresentação do ecossistema, onde as coisas estão prestes a se desenrolar de uma forma mais gráfica.


Temos a tia solteirona, a avó sovina, a amante magnética, a esposa infeliz, a filha perfeita maculada pelas tentações da cidade grande, a pequena rebelde com grande senso de justiça e a empregada sedutora.


O arranjo das apresentações vai desenvolvendo-se até o espectador habituar-se com os trejeitos, relações e disputas que cada uma carrega diante do assassinado: o chefe de família, com a morte anunciada ainda no início do filme.


Uma maneira inteligente de introduzir não só as suspeitas, como o próprio morto ao conhecimento do público.


Primeiro o assassinado foi “elevado” à posição comum de “líder” da casa, chefe, provedor diante de todas.


A seu modo, as personagens tinham esse emaranhamento que unia o grupo diante do totem.


O único homem da trama tinha o papel central de representar o esteio do lar, com uma onipotência até então configurada pelo próprio status quo.


Tanto foi a ligação emocional de todas frente ao poder do líder, que podemos metaforizar a ideia dos produtores de não darem um rosto a esse homem.


Hora nenhuma põe-se uma face ao líder, como se a exposição do totem, ou seja, do símbolo sagrado, profanasse o poder central e reduzisse a importância moralizadora da sua presença.


Para preservar a representação, o filme cria uma série de enigmas ao redor do totem, ou seja, do morto.


O primeiro deles é o enigma relacional. Existem regras de tratamento especial com o chefe do lar, como privilégios de horários, serviços de refeição e aposentos misteriosos.


O isolamento do totem em relação ao clã, um grupo de sete mulheres, é protegido por meio de uma convenção de tabus.


Tanto que cada integrante se relaciona com o homem indo a encontros secretos, sem que as demas saibam e sempre vestidas de reverente preocupação em relação à aprovação dele. Outro enigma é o visual, ninguém o vê, apenas é visto.


Isso as leva a um segundo movimento, de identificação psíquica enquanto indivíduos de massa.


Enquanto no movimento anterior haveria um desmembramento e pessoalização em função do reconhecimento do líder (vertical), no seguinte há uma ligação emocional entre os demais envolvidos (horizontal).


As mulheres se aproximam por um objetivo único: primeiro para escapar de um crime, mas depois para justificar que se o tivessem cometido teriam motivações parecidas.


O grupo interage entre nuances de simpatias e antipatias, que são desvendadas ao longo da convivência e da quebra dos segredos das mulheres.


O fim caminha para uma reviravolta psicológica, que pode ser comparada ao mito do parricídio.


Todo o assassinato teria sido um ato forjado pelo totem para testar a lealdade das mulheres e assim retirar de cada uma confissões genuínas sobre ele.


Não se sabe ao certo, porém, se a pressão da posição levou à queda final do pai, que foi dado por suicida, porque também deixam-se elementos vagos sobre um suicídio de fato.


Da mesma forma que algumas chaves do quarto do pai circularam pela casa e o acesso era despercebido pelos demais em várias passagens do filme, fica a sugestão de que alguma delas possa tê-lo confrontado e causado um acidente na sacada.


Outra possibilidade é que ele estivesse morto o tempo todo e acusá-lo falsário tenha sido um mecanismo para despistar o ato em si.


O cadáver poderia até ter sido arremessado pela sacada para forjar o suicídio, ou, é claro, temos a chance do suicídio real, da abdicação do totem e da desmistificação do líder supremo: onipresente, onisciente e onipotente.


Afinal, nenhuma cena conclusiva ou mesmo com o homem vivo é mostrada ao menos uma vez. A “verdade” é apenas dita, sem reconstituição da morte, embora tenhamos a reconstituição fragmentada de memórias particulares.


No fim, as personagens estão emancipadas pela própria circunstância e se vêm perdidas como num rebanho sem pastorado.


Quando as individualidades emergem-se ao grupo, temos um exemplo de comportamento de rebanho, neste caso um rebanho familiar.


Agora me diga, como você resolveria esse mistério?




 
 
 

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