Ruído branco é um filme existencialista. A existência humana é colocada à prova, cômica e tragicamente, pela experiência de uma família colateralmente afetada pelo escape tóxico de um desastre aéreo.
Mesmo sem morrerem, a morte, e o medo que vem junto, passam a ocupar o centro da vida dos personagens e também das conversas de jantar.
Algo que até então não fazia parte da realidade compartilhada, progressivamente avança dos contextos acadêmicos para o dia-a-dia comum de uma família.
Adam Driver, o pai na família, interpreta um estudioso especialista em Hitler. Ao lado dele, está o pesquisador de outra figura histórica: Elvis Presley.
Babette, a mãe na família, lida com as crianças, a casa, os alunos de ioga dela e alguns segredos por trás dos misteriosos frascos de pílula que tem escondido.
Em meio à uma vida cotidiana que não integra a filosofia com ela, uma inusitada “nuvem tóxica” que invade a cidade, após o evento aéreo, provoca uma imersão nos questionamentos de comum e sobrecomum, levando o professor universitário a testar algumas teorizações na prática.
Também nos leva a entender que nem todo mundo inserido numa situação prática é teórico.
Uma renovação ocorre no sentido de podermos pensar em pulsão de vida e morte. A morte qualificando a vida e a vida qualificando a morte, sendo conceitos aprendidos em contraste.
Na psicanálise, a “pulsão” é o impulso, o investimento libidinal na dinâmica mental. Estamos instintivamente voltados a criar e a destruir voluntária e involuntariamente.
Destruímos e finalizamos coisas buscando um desejo de paz e de continuidade que contradiz a inconstância, mas que acelera as oportunidades de que ela se manifeste. Entendemos os recomeços como oportunidades “zeradas”, que nos conforta em relação ao tempo e à possibilidade de melhores resultados.
Esse alívio entra em paradoxo inconsciente com o medo que sentimos de recomeçar. O alívio sobre uma nova chance persiste, mas o desconhecido nos amedronta.
Imagine a situação de estar com o corpo quente prestes a entrar em uma piscina gelada em um dia de sol. O primeiro impacto será resistido, evitado, odiado, mas depois com o que você consiga obter disso, um momento alegre que seja, te trará alívio e conforto por não ter ficado de fora.
Então ainda que as pulsões de vida e morte sejam inconstâncias necessárias à nossa eterna busca por melhoria e paz, não nos deixam de amedrontar.
Aliás, percebe o quão difícil é dar nome às coisas que se iniciam? Começos, ainda indefinidos, são tão desconhecidos quanto o futuro. O filme brinca com o “dar nome às coisas” o tempo inteiro, como nessa passagem entre uma das crianças e o pai sobre o evento tóxico que toma a cidade:
-Chamam isso de nuvem negra ondulante.
-É o que os Stovers disseram. Isso é bom.
-Bom por quê?
-Falei pra sua irmã que estão encarando de frente.
Em uma oportunidade anterior, sabemos que “dar nome ao problema era o princípio de enfrentá-lo”. Até então, o escape tóxico que formava uma nuvem era só uma “coisa amorfa que cresce. Uma coisa escura, viva, de fumaça”. Uma preocupação da qual ainda não somos donos e que podemos manter do lado de fora.
Tão extensa quanto complexa, indefinida pelo próprio estágio de começo, a nuvem foi tomando proporções filosoficamente comparáveis ao extermínio nazista.
Temos a imprevisibilidade do momento da morte, mas ela mesma é um evento previsível. Por outro lado, há a seletividade dos mortos.
Nos desastres ambientais, pobres e menos instruídos vão-se primeiro. No extermínio nazista, judeus e marginalizados.
Coloca-se em debate Elvis e Hitler, dois mortos aleatórios em relação um ao outro, mas com comparáveis do dia-a-dia que os colocam em posição de máxima simplicidade. Essa cena, transcorrida diante de um grupo de estudantes, solene como um tribunal do júri, separa a mortalidade do homem da imortalidade dos seus atos.
A pulsão de morte, ou seja, o impulso destrutivo é tão presente quanto a pulsão de vida, ou seja, o impulso construtivo de criar ou de gerar. Temos fins versus inícios.
Todo o meio constitui-se vida no seu termo mais regular de uma aparente homogeneidade. A interrupção desta ordem é sempre um dilema de fim e início, vida e morte, largada e chegada que nos leva a um auto sentenciamento de final de ciclo.
Dar sentido ao meio, sem preocupar-se com as pontas dele, é um grande desafio humano. Fazendo uma ponte com um outro assunto, mas que pode estar correlacionado, e, inclusive, muito tem-se divulgado a respeito, trata-se da medicalização da vida, no sentido de induzirmos mais e mais a medicação sobre eventos naturais do nosso processo de vivência, como tristeza, cansaço, sonolência, insônia, estafa, luto, desatenção e envelhecimento.
Por conta disso, a OMS tem promovido ações relacionadas ao uso racional de medicação.
Por que não, e isso é algo que é incitado pelo filme, falarmos na medicalização da morte? Esse conceito não existe, porém a misteriosa medicação que Babette vem tomando pertence à um experimento inicial de prolongamento da vida. São pílulas anti-morte.
O interessante é que quanto mais ela as toma, mais se lembra e se angustia do motivo de tomá-las: a morte.
A medicalização das pulsões são o cume de uma ciência existencialista? Isso faria do assunto parte do existencialismo ateu ou cristão? O professor nos parece cético, enquanto Babette tem várias curiosidades do pós-existência. Isso permite uma dialética diante do telespectador.
No fim de todas as contas, nos parece que o medo é o grande guarda-chuva que abriga não só as pulsões, como as formas que encontramos de remediá-las.
Então, o que você acha?

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