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Livre estou?

Foto do escritor: LanternaLanterna

Uma produção Dreamworks, Spirit é uma animação espirituosa sobre liberdade e desapego.


De 2002, o filme colore uma dicotomia norte-americana bastante antiga da indústria do folclore de faroeste: colonos versus nativos, com especial fundo de contradizer civilização e agreste, selvagem e social, individual e coletivo.


Spirit é um cavalo solto capturado pelos colonos de passagem pelo vale de corcéis. Ele é levado à cidade para adestramento e montaria, mas Spirit é relutante e não cede às tentativas de domesticação.


Aparentemente rebelde e individualista, Spirit tem um referencial completamente distinto de comunidade dos homens e, talvez por já se sentir parte de algo próprio, recusa-se a viver nos termos de pessoas que não querem sua presença, mas sua servidão e obediência.


Além dele, um indígena norte-americano (“pequeno rio”) também é mantido cativo e, mesmo com motivos parecidos para ter sido dominado, Spirit não se identifica com o indígena, afinal, todo humano é um humano e ele não confia na espécie.


Com o passar do tempo, e pelo correr da observação, o animal começa a se afeiçoar por “Chuva”, uma égua adestrada pelos nativos. “Chuva” é muito leal a “pequeno rio” e o carinho que sente por ele inspira em Spirit o exemplo de que alguns humanos são mais aliados do que inimigos.


Como na maior parte das animações mais antigas, Spirit mantém o fator chave de “duelo” em todas as viradas de roteiro, no sentido de explorar “bem e mal”, “certo e errado”, “domado e rebelde”, “livre e detido” como uma sucessão de eventos que naturalmente se excluem e se antagonizam pela própria natureza.


Mas apesar de o roteiro trabalhar com a perseguição dicotômica, os três principais personagens “do bem” fogem à normalização da gangorra de herói e anti-herói.


“Chuva” não é só um interesse romântico para adoçar a história, mas se torna um personagem que passeia pela transição ideológica: nem tão livre quanto Spirit, nem tão explorada quanto os corcéis dos colonos.


Por sua vez, o indígena norte-americano nem é um rebelde assimilado pela cultura branca, como seria um caubói independente, mas também não é um xerife ordeiro.


Spirit também sai da ideia de herói e vilão, mas tampouco é anti-herói. Ele não quer e não tem seguidores ou aprovação, mas a liberdade de ser um espírito em fuga contra qualquer dicotomia que lhe prenda o faz avançar no enredo.


Ao contrário do anti-herói que é desengonçado e um tanto inseguro, ou do herói, que é validado pelo público que o adora, Spirit é apenas autoafirmação.


Ele tem uma origem e não um império para salvar, deseja voltar ao lar não para prestar contas, mas pela saudade.


Se Spirit se coloca distante das posições periféricas, ou humanas, não teria ele uma independência de julgamento? Quando se opõe ao conhecido cultural, não faz oposição ao heroísmo e ao anti-heroísmo? Ao mesmo tempo, ele não nega nada nem ninguém.


Em uma jornada pela autoafirmação, Spirit inspira consciência sobre a individualidade, diferenciando-a de comparações que possam reduzi-la a redutos.


Ainda assim, podemos nos perguntar: por que existe um lugar comum morando em nós que tende a imprimir um duelo da autoafirmação com o bem comum? Porque o indivíduo benevolente precisa se colocar em constante e intenso sacrifício pelos demais para não perder o posto?


Não pode ser seguramente individual e benevolente?


Por falar em dicotomia como dilema inevitável nas aspirações humanas, Freud deixa contribuições em "mal-estar na civilização”:


Devido à hostilidade primária entre os homens, a sociedade é permanentemente ameaçada de desintegração. O interesse do trabalho em comum não a manteria; paixões movidas por instintos são mais fortes que interesses ditados pela razão. A civilização tem de recorrer a tudo para pôr limites aos instintos agressivos do homem, para manter em xeque suas manifestações, através de formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o uso de métodos que devem instigar as pessoas a estabelecer identificações e relações amorosas inibidas, [constrangidas], em sua meta; daí as restrições à vida sexual e também o mandamento ideal de amar o próximo como a si mesmo, que verdadeiramente se justifica pelo fato de nada ser mais contrário à natureza humana original” (FREUD, 1930, 2010, p. 49 – 50).


Ser indivíduo é pender para a autodestruição de si e do outro. O antídoto só pode estar na antítese: o grupo.


Nesse sentido, regras surgem como inibições artificiais para conter a hostilidade da natureza humana, que tende a se destruir. Regras não se iniciaram nas civilizações para garantir a liberdade do indivíduo, mas a sobrevivência do todo, que é o primeiro requisito para termos um corpo orgânico vivo sobre o qual dispor ou falar.


Naturalmente, o oposto disso, a individualidade, é lida por nós como um fator de desintegração, de marginalidade, de banditismo talvez, que muito se associa com nossa forma de pensar bondade e maldade, impregnadas no inconsciente corrente.


O que é liberdade para você?



 
 
 

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