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Confabulação

Foto do escritor: LanternaLanterna

Alguns roteiros são propositadamente encaixados com metodologia sistemática e prática, já outros, como Memoria (MUBI), nos conquista pela falta disso.


O longa nos aproxima do que seria a narração de um produto confabulatório. A confabulação, no seu sentido técnico, é a troca inconsciente de fatos da memória.


Tem gente que chama a confabulação de erro de memória ou memória fantasia, mas é bem mais preciso se a entendermos enquanto um repositório autoral de lembranças.


Repositório porque todos nós temos um acervo imenso de memórias guardadas que acessamos uma vez ou outra, e autoral porque a forma e o momento de acessá-las é muito original para cada indivíduo.


Em Memoria não há nada óbvio ou que não dialogue com os substratos mais implícitos do nosso subconsciente.


Em dado momento são fartas as brincadeiras entre sonho e estar acordado, consciência e inconsciência, lucidez e delírio, nos dando a vida como um pacote só.


Tilda Swinton protagoniza uma estrangeira na Colômbia. Ela mora na metrópole latina de Medellín, mas vai visitar a irmã hospitalizada em outra cidade no interior.


Esta é uma primeira retórica entre interno e externo, íntimo e extremo, cidade pulsante e campo latente.


O contraste é sempre e bastante estético, mas apenas didático porque conseguimos perceber a unidade, em perspectiva, do conhecido com o desconhecido.


A direção de imagem e fotografia nos presenteia como fazem as grandes vitrines de galerias de arte. É essa a impressão entre uma cena e outra.


Especialmente longas, as transições são bastante lentas, com poucos diálogos e uma focalização da câmera que nos dá a sensação de que assistimos a fotografias pela tela e não um filme.


Exploram-se também dois recursos de comunicação tão ou mais importantes que o próprio texto, que deixa, aliás, em certo momento, de ser o ingrediente principal do filme. Falamos dos efeitos de som e retrato.


O apelo à chave sonora foi uma aposta fundamental. O som dos elementos musicais visa traduzir experiências emocionais ocorridas à personagem principal, Jéssica.


Não fosse só o fato de ser ela uma estrangeira que arrisca falar poeticamente em uma língua não nativa, temos o simbólico momento em que é preciso decifrar um barulho, por meio de palavras, para o técnico de som.


Tudo começa por aí na verdade. Partindo de um som grave, denso e regressivo, como numa espécie de explosão centrípeta, Jéssica escuta o mesmo barulho, e incessantemente busca entendê-lo, ao lhe surgir qualquer experiência distorcida.


O segundo apelo, de retrato, é imagético. Dentre todas, cito a lenta cena de Hernan à beira do rio limpando peixes, que mais parece o registro de uma pintura.


Hernan, um homem adulto misterioso, conversa com a protagonista Jéssica sobre dormir, e aqui temos uma situação específica: Jéssica nunca dorme enquanto Hernan dorme, mas nunca sonha.


É bastante curiosa a aparência a quem não dorme, Jéssica, de que a vida em si é o próprio sonho, sem a separação vertical/horizontal de deitar-se ou por-se de pé para estar consciente.


Então, apesar de não dormir, Jéssica apenas sonha e Hernan, ao dormir, separa sua vida de um estado mortificado, dualista na essência. Quando acorda, não sabe o que se passa, enquanto Jéssica mantém-se alerta sem essa dissonância.


É como se vigilante, ou acordada fora da morte temporária (sono), estivesse em vida plena, o que não quer dizer que não a perturbe.


Intrigada sobre a possibilidade de dormir e não sonhar, Jessica pede a Hernan para que durma na sua frente. Assim como no estado de dormência, Hernan se demora deitado, e é filmado sem pressa para que o espectador capture essa essência.


O visual do adormecido é de morto, deitado de olhos abertos e fixos, com moscas lhe rondando a face.


Quando acorda, Jéssica lhe pergunta como foi morrer. Uma pergunta interessante, pois se ela nunca dorme, não experimenta travessias livres para o outro lado.


Falar em lados, aliás, é significativo na história, porque até então nada nos faz muito sentido, ou, pelo menos, sentido do lado de cá.


O filme nos dá plena liberdade interpretativa, pois não esclarece, pingo sobre pingo, todos os i’s do alfabeto. No entanto, existe aquela interpretação que cativa cada espectador.


Ao que parece, Jessica faleceu com a irmã em um desastre natural ocorrido na Colômbia, mas não sabe que faleceu e perambula por aí como se estivesse viva em busca de respostas ou de entendimento sobre o próprio eu.


Hernan, vivo, encontra com ela quando dorme, sendo capazes de interagir no plano invisível. Ele também parece perturbado ao entender-se com ela, os dois então se chocam, incompreendidos.

Encontram-se os dois cruzando memórias ressonantes, que conseguem acessar por identificação, ou, se preferir, memórias são confabuladas em conjunto para representar situações que jamais compreeenderíamos objetivamente, mas que fazem sentido aos envolvidos porque presos na afetividade da experiência subjetiva.


Gostou do filme? Conte para nós.












 
 
 

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