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Alcarràs

Foto do escritor: LanternaLanterna

Poucas coisas comovem tanto quanto a sobrevivência crua. Nela, a tragédia nunca chega, nunca choca, mas está sempre à paisana, sob espreita, pronta para nos atingir no dia seguinte e de surpresa.


Mata-se um leão por dia para que tenhamos as próximas 24 horas e, assim, movermos de um sacrifício a outro, para que não sejamos sacrificados no fim.


Essa autoentrega laboriosa e aflitiva está muito bem representada em Alcarràs, o longa-metragem europeu de 2022 que retrata a vida de uma família de pequenos agricultores na Espanha.


A produção acontece em terras cedidas décadas antes, entre os antecessores das famílias envolvidas em perseguições de guerra, as aproximando. Como um gesto de gratidão dos proprietários, que foram protegidos contra os invasores, decidiram por ceder a posse da terra.


O beneficiado foi o bisavô de Quimet, um homem de meia idade que hoje vive da produção de uvas e de pêssegos, mas que corre contra o tempo frente as disputas de território que põem a continuidade do negócio familiar em xeque.


Depois da morte dos proprietários originais, o que antes seria um contrato de comum acordo entre cavalheiros, transformou-se num direito de herança prestes a expropriar os moradores atuais.


Resumindo bastante, apenas um acordo verbal de décadas antes teria concedido o direito de exploração das terras de uma família a outra, sem respaldo algum em documentos. Diante dos herdeiros, os trabalhadores da terra estão desamparados.


Contrários aos desejos ancestrais, os herdeiros formais preferiam dar outro destino ao solo: investir no ramo de painéis solares, instalando grandes placas pelo lugar afora. Para isso, determinaram a derrubada das plantações durante a fase de colheitas.


Esse é um grande fator de pressão sobre o espectador, que sofre com a correria de Quimet para evitar perder tudo o que tem.


O drama explora várias vertentes sensíveis em se tratando de pequenos produtores.


Apesar de a referência geoespacial ser européia, existe uma identificação universal nesta problemática dos pequenos trabalhadores rurais: sobrecarga de trabalho, práticas predatórias de negociação, precarização da cadeia produtiva, pressão por parte de grandes corporações para maior lucratividade, em detrimento da qualidade do produto.


Inclusive o filme aborda a raiva política de um espaço de desespero pela sobrevivência. O direito de propriedade neste filme não se esgota com a burocracia da escritura, mas exala questionamentos mais profundos sobre raízes, ancestralidade, valores sociais no campo econômico.

O direito de propriedade está intrinsecamente ligado ao senso de valor da família no campo, ali se nasce, cresce, come, vive, casa, procria, desenvolve e estabelece. Somados, os trabalhos árduos das famílias que vivem o ciclo econômico e cultural como se um só, formam comunidades inteiras.


São alvo de orgulho e precisam lutar pela permanência. Os painéis solares, como negócios encomendados, aparecem na forma de alegoria oportunista e desapaixonada, que promete um enriquecimento automático e engessado.


Podemos trazer nota sobre algumas metáforas no que diz respeito ao direito de propriedade.


O elenco infantil do filme conversa o tempo inteiro com o relacionamento entre felicidade e lugar.


A primeira cena do longa se passa dentro de um fusca abandonado, onde as crianças se encontram para brincar e pertencer.


Não por acaso podemos considerar que foi logo a primeira quebra do direito de propriedade no filme. É claro, não literal.


Uma retroescavadeira parte com o fusca dali, nos deixando pistas sobre o tópico principal: quando a propriedade é mesmo posse e quando é ela apenas um empréstimo?


Ainda que o fusca fosse das crianças, eles precisariam de permissão dos pais. Da mesma forma, seus pais só plantavam naquele território sob a permissão dos donos de direito.


Desde a perda do fusca, as crianças estão deslocadas e descoladas do resto, buscando novas associações de espaço o tempo todo, e, sendo ameaçadas por questões que estão fora da lógica delas. Assim como os pais e a família estão fora da lógica dominante do capital, ao menos no anseio.


Do ponto de vista econômico, a implementação dos painéis solares parece ser mais “realista”, menos “lúdico” do que um sonho familiar de seguir as tradições de família e de manter a estruturação de uma noção privativa de felicidade. É o mesmo que manter “o fusca dos adultos”.


O filme é interessantíssimo porque traz justamente este olhar de criança sobre todas as questões que são desdenhadas de cima para baixo. A reflexão é essa, de que desdenhamos daquilo que infantilizamos ou que rebaixamos por falta de compreensão.


O signo rural, em última análise, funciona como um grande baluarte que alberga o sonho adulto e que tristemente flerta com a dureza da imposição dos grandes pragmáticos.


Como último parêntese, podemos pensar nos movimentos de protesto do ludismo, pelos tecelões ingleses na época da Revolução industrial. Nesta fase histórica, os artesãos destruíam as máquinas porque assistiam à tomada dos postos de trabalho manuais. Olhando para trás vemos que houve mesmo substituições. Devemos pensar hoje com mais sensibilidade a crise agrária, alimentar e campesina.


Assista ao filme e depois nos conte o que você acha :)



 
 
 

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