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Pelo menos 1 motivo para reassistir a "Pinóquio" por Guillermo del Toro

Foto do escritor: LanternaLanterna

Atualizado: 31 de jan. de 2023


Guillermo Del Toro é um cineasta interessante. Assim como Tim Burton, é muito mais conhecido pela impressão que deixa, pela assinatura artística, do que propriamente pelo título das obras.


A impressão que lhe é típica não deixou a desejar com sua nova versão de Pinóquio, um clássico da literatura infantil, agora relido pelas lentes de um diretor faminto por gerar espanto no público.


Esse espanto, intencional ou não, faz parte da bagagem profissional de Guillermo, que inclusive lançou em 2022 uma coleção de contos de terror, cunhada de “Gabinete de curiosidades” para a satisfação dos fãs da marca.


Voltando a Pinóquio, uma história naturalmente adocicada pelo audiovisual, percebemos os pincelados multicromáticos trazidos à fábula no que diz respeito ao desenvolvimento pessoal.


O mais incrível é que os momentos sombrios do filme geralmente estão nas passagens um tanto quanto cruas, ou mais atormentadas pela realidade humana, como passar pelo luto, viver a experiência do desalento, cair no fracasso, na tirania e trapaça ou ter medo.


O tom de cada fase é de uma afetação conforme à vulnerabilidade do personagem.


Quando Gepeto perde seu filho Carlo ele se torna miserável. Quando, ainda na miséria, não entende o pequenino de madeira com amor, o massacra com palavras duras, como se acusasse sentimentos pela genuinidade ou não do corpo daquele intruso.


Um filho não pode ser substituído. Podemos, no entanto, deslocar a paternidade ou compartilhá-la entre outros afetos? Afinal, nosso afeto é em última análise, finito?


“Fardo”. Essa se tornou uma palavra-chave importantíssima na costura do enredo. E é esse conceito, de uma simplicidade quase unânime, e, arrisco dizer que sombrio por essa razão, tão repetido em quase todas as sequências que se seguem.


Fardo, ao contrário da simplicidade do entendimento, é algo difícil de suportar, tal como um peso contra as costas, pescoço e lombar, antiprogressista, tracionado.


Quando o vilão seduz Pinóquio a desviar-se da escola para caminhos mais atraentes, com promessa de brinquedos, elogios e comidas gostosas, a inocência de Pinóquio nos faz lamentar por alguns instantes a bondade no seu estado puro.


Lamentamos não porque atos de bondade e inocência sejam ruins, mas porque eles expõem a não bondade daquele que dela se aproveita, afinal, só declaro algozes onde concebo a existência da vítima.


O pano de fundo do filme é a Itália fascista em guerra. Os soldados e cidadãos italianos tiveram as vidas encalhadas e subjugadas pela luta forçada, estando todos vulnerabilizados pelo cenário político, econômico, social e cultural.


O grilo, inicialmente apresentado como um personagem de caráter vaidoso e crítico é vítima da própria megalomania, da auto grandeza e da soberba, diametralmente opostas à fragilidade de sua compleição física.


Sendo assim também vulnerabilizado pelas condições da natureza, pelas restrições de espaço do homem e por outras circunstâncias práticas da vida.


Com o desenrolar, alguém poderia dizer que ele foi reduzido a um pequeno, mas podem também dizer que a mudança foi perceber-se tal qual era, menor, porém inteiro.


Toda a sua auto importância foi sublimada para a função de cuidador de Pinóquio, devotando suas capacidades de atenção a algo diferente da própria estima.


Já Pinóquio quando não seduzido pelos prazeres do entretenimento, iludia-se com o privilégio da imortalidade.


Um superpoder, quase como o do grilo, de especializar-se enquanto extraordinário.


A desilusão veio como um fardo, ao dar-se conta de que embora ele não morresse teria de viver a imortalidade carregando o luto, porque todos que estão ou que virão haveriam de morrer.


Esses episódios de vulnerabilidade nos alardeiam e nos deixam incomodados porque temos muita resistência para aceitar comportamentos "culturalmente viciados". A vida é impermanente, mas jogamos fora ou não queremos falar sobre as curvas que ela percorre, porque nos dariam por derrotados e tristes.


Além dessa, o filme nos deixa outra nota de reflexão.


Só o NARCISISTA ama NARCISICAMENTE?

Não, vamos devagar.


Nós sempre desejamos que Pinóquio fosse transformado em um menino de verdade. Falando por mim, especialmente lembrando-me do primeiro contato com a história, eu desejei muito intensamente que ele fosse transformado desde o início, porque um menino de madeira jamais seria um menino de verdade.


E vamos nos lembrar de que o menino de verdade foi o objeto primário e principal do máximo afeto paternal introduzido pela história.


Bom, abaixo do máximo nada é máximo.


Todos nós amamos narcisicamente, mas poucos de nós somos narcisistas. Amamos o que nos agrada, o que nos relembra a própria infância, os próprios credos, o próprio local, história e genealogia familiar.


Gostamos de contexto e de que ele seja relacionável, sobretudo nos afetos.


Contrariando a tradição, Pinóquio não foi transformado em um menino real afinal de contas, o que para nós contradiz com a conclusão do ser perfeito e da felicidade de um pai de verdade, podemos até construir uma analogia com a paternidade biológica e socioafetiva.


O realista, sugestivamente, não é bem ser de carne e osso, mas assumir a crua e dolorosa essência de pau. É ser de madeira em uma família de vivos, sem que isso roube a harmonia ou dispute lugares preenchidos.


A felicidade está onde ela cabe ou onde ela excede?


Receber amor sendo um ingrato, ou seja, sem negociar a própria identidade nos deixa uma grande lição de amor pós-narcisista.


Na psicanálise, o amor narcísico é aquele em que se ama um igual ou o próprio ideal, como se o outro fosse uma extensão do que mais admiramos no espelho.


Em segundo plano, amamos mais rápido quem lembra a gente. Não reforçar um amor narcísico é chocante e até mesmo sombrio, ao estilo de Toro.


Erik Erikson, um psicanalista que desenvolveu uma das teorias do desenvolvimento psicossocial, já falava de amor pós-narcisista como um atributo do ego integrado.


Neste Pinóquio, o ato de mágica que transformaria a madeira em menino não acontece, mas sim um processo integrado de concessão entre tudo o que é bom e tudo o que é desafio, seguindo adiante com o que se tem.


Os queridos do boneco morreram de velhos e Pinóquio fez o seu melhor dentro do tempo que tinha com eles: ele viveu como pôde e homenageou as pessoas que amou com a sua natural presença.


Mesmo sem qualquer identificação com o meio.

Tão simples como o fardo: só o amor.




 
 
 
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